Introdução
Vivemos em uma era marcada pelo culto à produtividade, ao desempenho e ao sucesso individual. Redes sociais exaltam estilos de vida perfeitos, empresas exigem profissionais multitarefas e a lógica da autoexploração tornou-se regra. Nesse cenário, a obra Sociedade do Cansaço (2010), do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, oferece uma das análises mais contundentes sobre os efeitos do neoliberalismo e da cultura da performance sobre os indivíduos.
Segundo Han, não vivemos mais em uma sociedade disciplinar, como descreveu Michel Foucault, mas em uma sociedade do desempenho. Se antes predominava a repressão externa, hoje a pressão vem de dentro: somos cobrados a sermos sempre produtivos, eficientes e positivos. O resultado? Uma epidemia de cansaço, depressão, ansiedade e burnout.
Neste artigo, vamos explorar os principais aspectos da teoria da Sociedade do Cansaço, contextualizar sua relação com outras correntes filosóficas, analisar seus efeitos sociais e psicológicos e refletir sobre possíveis caminhos de resistência diante desse cenário.
Quem é Byung-Chul Han?
Byung-Chul Han nasceu em Seul, Coreia do Sul, em 1959, e se estabeleceu na Alemanha, onde leciona filosofia e estudos culturais. Tornou-se um dos filósofos mais influentes da atualidade ao propor diagnósticos críticos sobre a sociedade contemporânea, com obras como:
- Sociedade do Cansaço (2010);
- Sociedade da Transparência (2012);
- Psicopolítica (2014);
- No Enxame (2013).
Han é conhecido por sua escrita clara, concisa e crítica, que busca compreender as formas sutis de dominação no mundo atual.
O que é a Sociedade do Cansaço?
A Sociedade do Cansaço é um conceito que descreve a condição social da modernidade tardia, marcada pela pressão constante por produtividade, performance e autoaperfeiçoamento.
Diferença entre a sociedade disciplinar e a sociedade do desempenho
- Sociedade disciplinar (Foucault): marcada por instituições de controle (prisões, escolas, fábricas), com repressão externa.
- Sociedade do desempenho (Han): marcada pela autoexploração, onde cada indivíduo é empresário de si mesmo e busca, voluntariamente, superar seus próprios limites.
A transição de uma sociedade da repressão para uma sociedade da performance trouxe consigo novas formas de adoecimento.
Han argumenta que essa configuração mudou de maneira profunda no século XXI. Vivemos em uma sociedade do desempenho, onde os mecanismos de repressão externa cedem lugar à lógica da autoexploração. Não é mais o Estado, a fábrica ou a escola que ditam com tanta intensidade o que devemos fazer. Agora, o indivíduo é convocado a ser “empreendedor de si mesmo”, a gerir sua vida como se fosse um negócio, a estar sempre disponível, eficiente e otimizado.
Essa mudança é sutil, mas devastadora. Enquanto a sociedade disciplinar operava pela negatividade do “não podes”, a sociedade do desempenho se constrói pela positividade do “podes sim”. A ilusão de liberdade se torna um poderoso mecanismo de dominação. A pessoa acredita que age por vontade própria, mas na realidade responde a um sistema que a exige produtividade contínua.
As doenças da Sociedade do Cansaço
Han aponta que a sociedade contemporânea sofre de uma série de doenças que não são mais infecciosas, mas psicológicas e neurológicas:
- Depressão;
- Ansiedade;
- Burnout;
- Transtornos de déficit de atenção;
- Síndromes de exaustão crônica.
Essas doenças refletem não a repressão externa, mas o excesso de positividade e cobrança interna.
O excesso de positividade e a autoexploração
Uma das categorias centrais em Han é a da positividade excessiva. Diferentemente da repressão característica da disciplina, a sociedade do desempenho se organiza pela lógica afirmativa, pela multiplicidade de estímulos, oportunidades e exigências. Não é o “não” que marca a experiência, mas o “sim, é possível”.
Esse excesso de positividade leva ao fenômeno da autoexploração. O indivíduo não precisa mais de um chefe que o vigie de maneira ostensiva. Ele próprio se transforma em vigia de si mesmo, buscando sempre bater metas, superar limites, render mais. Trabalha-se não apenas durante o expediente, mas também nos momentos de lazer, pois a fronteira entre vida pessoal e profissional se dilui.
A noção de “tempo livre” perde força diante de uma cultura que valoriza a hiperatividade. As redes sociais, por exemplo, transformam até o lazer em um campo de exposição e de produtividade. Aquele que não se mostra, que não está presente, que não participa da lógica do engajamento constante, parece invisível e irrelevante.
Byung-Chul Han mostra que esse regime não produz apenas indivíduos cansados, mas também sujeitos culpados, afinal, se todos têm potencial ilimitado, então não alcançar determinado objetivo só pode significar falta de esforço. Surge, assim, uma culpabilização interna permanente, que mina a autoestima e reforça o ciclo da autoexploração através de um discurso de meritocracia.
Doenças contemporâneas e a saúde mental em crise
Um dos pontos mais contundentes da análise de Han é a associação entre a sociedade do desempenho e as doenças psíquicas da modernidade tardia. O filósofo argumenta que transtornos como depressão, ansiedade, síndrome do pânico e burnout não podem ser compreendidos apenas no nível individual, como falhas biológicas ou emocionais isoladas. Eles são sintomas sociais de um sistema que sobrecarrega os indivíduos com demandas incessantes.
O burnout, em especial, se tornou um fenômeno emblemático. Mais do que simples cansaço, representa o colapso do sujeito que acreditou poder produzir sem limites, até esgotar suas forças. A depressão, por sua vez, se manifesta como incapacidade de atender ao imperativo de desempenho. O deprimido é aquele que não consegue mais corresponder ao “Yes, we can”, vivendo a si mesmo como fracasso.
Além do ambiente de trabalho, as redes sociais desempenham papel crucial nesse cenário. Elas intensificam a pressão por reconhecimento, já que cada postagem é uma forma de medir valor social. Curtidas, comentários e compartilhamentos se tornam indicadores de desempenho afetivo e social. Essa constante busca por validação gera ansiedade e reforça o cansaço estrutural.
A saúde mental, nesse contexto, não pode ser vista apenas como responsabilidade individual. Trata-se de uma questão coletiva, ligada ao modelo econômico e cultural vigente. A medicalização, por mais que alivie sintomas, não resolve o problema estrutural da sociedade do cansaço.
Resistências e possibilidades de ruptura
Diante desse diagnóstico, surge a pergunta inevitável: como resistir à sociedade do cansaço? Han não oferece soluções simples ou utópicas, mas aponta alguns caminhos possíveis.
O primeiro deles é a revalorização do ócio. Diferente da preguiça ou da improdutividade, o ócio é entendido como espaço de liberdade, contemplação e criatividade. É no tempo não direcionado à produção que o ser humano pode se reconectar com sua essência.
Outra possibilidade é a valorização do silêncio. Em um mundo saturado de informações, estímulos e ruídos, o silêncio se torna revolucionário. Não se trata apenas de ausência de som, mas de um espaço interior de afastamento das pressões externas.
Han também destaca a importância das relações autênticas, que não se baseiam em utilidade ou performance. O encontro humano verdadeiro exige tempo, presença e atenção – qualidades cada vez mais raras na lógica acelerada da modernidade.
No entanto, o filósofo também recebe críticas. Alguns estudiosos argumentam que sua análise é excessivamente pessimista ou abstrata, não levando em conta resistências concretas que já existem no tecido social. Outros apontam que sua obra carece de soluções políticas mais estruturadas, limitando-se a recomendações individuais.
Apesar dessas críticas, a força de Sociedade do Cansaço está justamente em oferecer um diagnóstico lúcido e perturbador, que nos obriga a refletir sobre as bases de nossa vida cotidiana.
Conclusão
A Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han, é uma obra breve, mas com um alcance teórico imenso. Sua análise da transição da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho revela como a modernidade transformou as formas de dominação, deslocando-as para o interior do sujeito.
O excesso de positividade, o imperativo do desempenho e a lógica da autoexploração criaram um ambiente propício ao adoecimento psíquico. Depressão, ansiedade e burnout não são meros problemas individuais, mas sintomas de um sistema que exige do indivíduo uma produtividade infinita.
Ao propor alternativas como o ócio, o silêncio e a busca por relações autênticas, Han convida à reflexão sobre formas de viver que escapem ao ciclo da exaustão. Ainda que suas soluções sejam mais existenciais do que políticas, sua obra cumpre um papel essencial: denunciar um modelo que disfarça a dominação como liberdade e que converte a vida humana em uma corrida sem fim rumo ao esgotamento.
Compreender a sociedade do cansaço é, portanto, o primeiro passo para pensar resistências e construir novos caminhos para o futuro.
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