Introdução

A biopolítica tornou-se um dos conceitos centrais para compreender a forma como os Estados modernos e diversas instituições exercem poder sobre a vida humana. Desenvolvida inicialmente pelo filósofo Michel Foucault, essa noção descreve um conjunto de práticas, estratégias e racionalidades políticas voltadas para administrar populações, regular corpos e produzir certos modos de existência. Trata-se, portanto, de uma forma de poder distinta das antigas soberanias, que puniam e disciplinavam. A biopolítica busca gerir a vida, otimizar capacidades, controlar riscos, monitorar comportamentos e produzir subjetividades.

No século XXI, o conceito ganhou ainda mais relevância. Governos, empresas de tecnologia, sistemas de vigilância digital e políticas de saúde pública passaram a operar segundo racionalidades bio-políticas, utilizando dados, estatísticas e mecanismos de gestão para intervir diretamente na vida física e social das pessoas. Assim, compreender a biopolítica é fundamental para entender fenômenos como pandemia, políticas de vigilância, criminalização de grupos sociais, controle migratório, medicalização da vida e modelos de governança global.

Este artigo busca explicar o conceito de biopolítica em profundidade, apresentando sua origem, seus desdobramentos teóricos e seus impactos práticos. Serão discutidas suas relações com o biopoder, suas diferenças em relação à necropolítica, bem como exemplos concretos de sua aplicação no Brasil e no mundo contemporâneo.

O que é Biopolítica?

A biopolítica pode ser entendida como um conjunto de mecanismos por meio dos quais o poder incide diretamente sobre a vida — os corpos individuais e as populações. Para Foucault, trata-se de uma transformação histórica do modo como o poder atua: em vez de simplesmente punir, controla, regula e normaliza.

Esse poder tem duas dimensões principais:

  1. O poder sobre os corpos – chamado de “anátomo-política do corpo humano”.
  2. O poder sobre a população – chamado de “biopolítica das populações”.

A combinação desses dois níveis constitui o biopoder, um modelo de governo que emerge a partir do século XVIII e se intensifica no XIX e XX.

Assim, a biopolítica administra:

  • taxas de natalidade e mortalidade;
  • fluxos migratórios;
  • saúde pública e epidemias;
  • políticas de segurança;
  • comportamentos de risco;
  • produtividade econômica;
  • uso disciplinar do corpo;
  • vigilância e monitoramento.

Origem e desenvolvimento do conceito

Michel Foucault: o ponto de partida

O conceito de biopolítica foi sistematizado por Michel Foucault em obras como:

  • História da Sexualidade (1976);
  • Segurança, Território e População (aulas de 1977–78);
  • Nascimento da Biopolítica (1978–79).

Foucault argumenta que, a partir do século XVIII, o poder soberano — o poder do rei de “deixar viver ou fazer morrer” — é gradualmente substituído por um poder que busca “fazer viver e deixar morrer”. Ou seja, o foco passa a ser:

  • produzir vida;
  • aumentar o bem-estar da população;
  • melhorar condições sanitárias;
  • gerir riscos sociais.

Essa mudança está diretamente ligada ao surgimento da estatística moderna, da medicina social, da urbanização e das políticas de Estado que visam governar populações inteiras.

O poder disciplinar e a biopolítica

Segundo Foucault, duas formas de poder operam simultaneamente no mundo moderno:

1. Poder disciplinar

Voltado para o corpo individual: treinar, moldar, corrigir, vigiar. Exemplo: escolas, prisões, fábrica, quartéis.

2. Biopolítica

Voltada para a população coletiva: estatísticas, saúde pública, segurança biológica, políticas de natalidade.

Enquanto o poder disciplinar individualiza, a biopolítica massifica.

Biopoder: a gestão da vida como instrumento político

A biopolítica integra um conjunto maior chamado biopoder, que designa como a vida se tornou objeto de políticas públicas, de instituições e até de empresas privadas.

O biopoder opera por meio de:

  • normas (o que é considerado normal ou desviado);
  • estatísticas (mortes, nascimentos, epidemias, produtividade);
  • políticas de saúde;
  • campanhas de vacinação;
  • controle de fronteiras;
  • vigilância comportamental;
  • programas de controle social e prevenção criminal.

O corpo humano e a vida coletiva se tornam unidades administráveis — recursos políticos.

Exemplos contemporâneos de biopolítica

1. Pandemias e políticas sanitárias

A pandemia de COVID-19 evidenciou claramente a lógica biopolítica:

  • rastreamento de contatos;
  • quarentenas e confinamentos;
  • exigência de máscaras;
  • decisões sobre quem pode circular;
  • campanhas de vacinação;
  • gestão hospitalar baseada em estatísticas.

A vida biológica se torna assunto central de decisões políticas.

2. Vigilância digital e algoritmos

Atualmente, grande parte do controle sobre os corpos ocorre digitalmente:

  • coleta massiva de dados;
  • geolocalização;
  • câmeras de reconhecimento facial;
  • inteligência artificial que prevê comportamentos;
  • plataformas que monitoram hábitos de consumo, saúde e movimento.

Empresas de tecnologia transformam dados biológicos e comportamentais em ferramentas de governança.

3. Políticas de imigração

Estados definem quem pode ou não entrar no território nacional com base em:

  • risco sanitário;
  • risco social;
  • origem geográfica;
  • capacidade produtiva;
  • perfil étnico e cultural.

O corpo do migrante se tornou objeto de políticas de segurança e filtragem.

4. Sistema prisional

O encarceramento em massa, principalmente de populações pobres e racializadas, é uma forma de biopolítica disciplinar e securitária. O objetivo é gerir “corpos indesejáveis” considerados riscos sociais.

5. Gestão da sexualidade e da reprodução

Controle de natalidade, aborto, políticas de fertilidade, acompanhamento pré-natal, entre outros, também constituem formas de biopolítica.

Biopolítica e neoliberalismo

Em Nascimento da Biopolítica, Foucault amplia o debate para a economia, mostrando que o neoliberalismo introduz mecanismos de autogestão da vida. Nesse sistema, o indivíduo deve:

  • monitorar sua saúde;
  • ser produtivo;
  • administrar riscos;
  • maximizar competências;
  • tratar a si mesmo como “capital humano”.

Ou seja, o Estado não controla diretamente, mas cria condições para que os indivíduos se autovigiem e se autogerenciem. É uma forma de biopolítica indireta.

Biopolítica e desigualdades sociais

A biopolítica não opera de forma neutra. Ela intensifica desigualdades ao selecionar quais vidas devem ser protegidas e quais são negligenciadas. Geralmente, populações marginalizadas — pobres, negros, periféricos, migrantes, pessoas trans — ficam mais sujeitas a formas agressivas de controle.

Alguns exemplos:

  • policiamento mais intenso em bairros periféricos;
  • políticas sanitárias insuficientes em áreas pobres;
  • controle moral sobre corpos considerados desviantes;
  • criminalização de práticas culturais específicas.

Assim, a biopolítica revela quem é reconhecido como cidadão pleno e quem é classificado como “vida dispensável”.

Biopolítica, necropolítica e o poder sobre a morte

A biopolítica de Foucault foi posteriormente ampliada pelo filósofo Achille Mbembe, que propôs o conceito de necropolítica: o poder de determinar quais vidas podem ser deixadas para morrer ou sacrificadas.

Enquanto a biopolítica busca administrar a vida, a necropolítica opera pela produção da morte.

A necropolítica explica fenômenos como:

  • genocídios;
  • violência policial letal;
  • abandono estatal de populações indígenas e periféricas;
  • guerra às drogas;
  • políticas migratórias mortais;
  • conflitos armados.

Biopolítica e necropolítica não são opostas: frequentemente coexistem. O Estado pode proteger uma parte da população e abandonar outra.

Aplicações da biopolítica no Brasil

1. Sistema de vigilância e segurança pública

No Brasil, a biopolítica se expressa:

  • no controle ostensivo sobre jovens negros e periféricos;
  • no monitoramento policial;
  • na vigilância via câmeras e bases de dados;
  • em políticas de criminalização da pobreza.

A gestão da vida passa por um filtro racial e social.

2. Gestão da saúde pública

O SUS aplica políticas biopolíticas:

  • campanhas de vacinação;
  • controle de endemias;
  • regulação sanitária;
  • programas de planejamento familiar.

Embora sejam políticas de proteção, também envolvem decisões sobre prioridades e investimentos.

3. Políticas socioeducativas e disciplinares

Redes escolares, sistema socioeducativo e políticas assistenciais definem padrões de comportamento, visando disciplinar e normatizar corpos.

4. Controle fronteiriço e imigração

Cresce o controle sobre fluxos migratórios (haitianos, venezuelanos), com políticas que regulam quem entra, quem permanece e em quais condições.

Consequências e críticas à biopolítica

A biopolítica recebe diversas críticas por:

  1. Naturalizar o controle sobre corpos.
  2. Intensificar desigualdades raciais e sociais.
  3. Transformar indivíduos em dados e perfis de risco.
  4. Enfraquecer liberdades individuais.
  5. Promover vigilância constante.
  6. Criar um ideal de “corpo produtivo” em detrimento de corpos vulneráveis.
  7. Gerar políticas paternalistas que tratam cidadãos como objetos de gestão.

Por outro lado, defensores argumentam que:

  • políticas sanitárias salvam vidas;
  • monitoramento populacional permite prever riscos;
  • regulação biológica é essencial para a saúde pública;
  • o Estado precisa intervir em condições biológicas para garantir bem-estar coletivo.

A biopolítica, portanto, é ambivalente: produz vida e, ao mesmo tempo, controla de maneira profunda.

Conclusão

A biopolítica é uma das chaves fundamentais para compreender o funcionamento do poder na contemporaneidade. Mais do que políticas de governo, ela envolve modos de ver, pensar e administrar a vida. Seu impacto vai desde políticas sanitárias e mecanismos de vigilância digital até práticas de controle social e gestão econômica dos corpos.

Ao administrar estatísticas, riscos e comportamentos, o Estado moderno transforma populações em objetos de intervenção constante. Ao mesmo tempo, desigualdades raciais, sociais e territoriais fazem com que a biopolítica produza vidas valorizadas e vidas negligenciadas.

No século XXI, as dinâmicas biopolíticas se expandiram para plataformas digitais, algoritmos e economias de dados, mostrando que o controle sobre a vida deixa de ser apenas estatal e passa a ser também corporativo. A fronteira entre cuidado e vigilância, proteção e controle, benefício e risco, torna-se cada vez mais tênue.

Compreender a biopolítica é indispensável para interpretar os desafios do mundo contemporâneo, questionar modelos de governança e defender direitos humanos em uma era de gestão total da vida.

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