Introdução
Nos últimos anos, o Brasil assistiu ao crescimento acelerado de um fenômeno que se espalhou pelas redes sociais, empresas, palestras e cursos on-line: o coaching motivacional. Apresentados como especialistas em produtividade, alta performance ou desenvolvimento pessoal, muitos coaches se tornaram figuras populares, influentes e, em alguns casos, extremamente lucrativas.
Porém, junto com essa explosão de popularidade, veio também uma onda de críticas, denúncias de charlatanismo e reflexões sobre os riscos de uma indústria que promete transformações profundas sem base científica, metodológica ou profissional.
A pergunta se impõe: por que a picaretagem dos coaches se tornou tão comum?
E mais: como compreender esse fenômeno dentro do contexto social, econômico e cultural do Brasil contemporâneo?
Este artigo oferece uma análise crítica, informativa e aprofundada sobre o universo dos coaches motivacionais, investigando suas origens, seus discursos, seus métodos questionáveis e o impacto desse mercado sobre a saúde mental e o imaginário social.
A ascensão dos coaches: como tudo começou
O coaching, em seu sentido original, surgiu nos Estados Unidos nos anos 1970, ligado a práticas de desenvolvimento profissional e empresarial, inspiradas em metodologias da psicologia cognitiva e da gestão corporativa. Era uma prática restrita, aplicada por especialistas formados e com base em pesquisas acadêmicas sérias.
No entanto, o que se popularizou no Brasil foi uma versão simplificada, descolada de ciência e altamente comercializada da prática. O fenômeno tomou corpo especialmente a partir de 2010, impulsionado por:
- Redes sociais e produção massiva de conteúdo motivacional;
- Crises econômicas e desemprego em massa;
- A promessa de “enriquecimento rápido” e “transformação imediata”;
- A fragilização do acesso à saúde mental;
- O crescimento de um discurso de meritocracia tóxica, que responsabiliza o indivíduo por todos os fracassos e sucessos.
Desse caldo social emergiu um tipo específico de coach: o coach-picareta, que se apresenta como especialista em absolutamente tudo — finanças, amor, liderança, espiritualidade, produtividade e até cura emocional — sem ter formação adequada.
Como funciona a picaretagem dos coaches
A atuação dos coaches picaretas segue um conjunto de estratégias previsíveis e altamente eficazes em termos de marketing. Entre as mais comuns, destacam-se:
1. A promessa impossível
Frases típicas:
- “Eu mudei a minha vida e vou mudar a sua.”
- “Em 7 dias, você será uma nova pessoa.”
- “Você não tem dinheiro? Esse é o motivo pelo qual precisa do meu curso.”
Promessas rápidas e milagrosas são o motor da fraude.
2. A narrativa do “eu era pobre e agora sou rico”
A maioria se apresenta como alguém que “superou tudo sozinho”, mesmo quando possui histórico privilegiado. Criam uma narrativa de superação artificial que atrai pessoas vulneráveis.
3. A culpabilização da vítima
A lógica é simples:
Se você não conseguiu, a culpa é sua — você não se esforçou o suficiente.
Essa retórica é cruel, pois ignora determinações estruturais como desigualdade, desemprego, precarização do trabalho e condições psicológicas reais.
4. A falsa autoridade
Coaches picaretas usam títulos inventados, certificados de cursos de um fim de semana e fórmulas vazias. Muitos se apropriam erroneamente de termos científicos da psicologia, neurociência e até física quântica.
5. A monetização infinita
É comum oferecer:
- Mentorias individualizadas;
- Cursos em série;
- Palestras caras;
- Comunidades pagas;
- Vendas de livros rasos;
- Produtos motivacionais.
O objetivo não é transformar vidas — é transformar seguidores em renda constante.
A base ideológica: o discurso da meritocracia tóxica
Grande parte da picaretagem dos coaches se sustenta na meritocracia tóxica, uma narrativa que afirma que:
- qualquer pessoa pode “vencer” se quiser;
- a pobreza é sempre culpa do indivíduo;
- desigualdade é consequência de falta de vontade;
- trabalhar 12 horas por dia é um caminho para o sucesso;
- problemas emocionais se resolvem com mentalidade positiva.
Essa ideologia é extremamente funcional para o sistema neoliberal, pois desvia o foco das causas estruturais das dificuldades sociais — como desemprego, falta de oportunidades, desigualdade histórica, racismo e concentração de renda.
Enquanto o indivíduo se culpa por não “performar”, o sistema permanece intacto.
O coach picareta como sintoma de uma sociedade adoecida
O sucesso desse tipo de charlatanismo não pode ser entendido isoladamente. Ele está ligado a transformações profundas no mundo do trabalho e na vida urbana.
1. Precarização laboral
Com a uberização, o trabalho informal e a instabilidade financeira, mais pessoas se sentem fracassadas e buscam soluções rápidas.
2. Solidão e fragilidade emocional
A falta de acesso a cuidados psicológicos faz muitos recorrerem a “terapias alternativas” desreguladas, como o coaching.
3. Crise da identidade profissional
Num mundo ultra-competitivo, as pessoas não sabem mais quem são ou o que devem fazer. Coaches prometem dar essa resposta.
4. Cultura da performance
A pressão para ser produtivo, vencer e aparecer bem-sucedido nas redes sociais é insustentável — e coaches se aproveitam disso.
A estética do coach: gritos, frases prontas e palcos iluminados
Os coaches picaretas utilizam uma estética que reforça a sensação de autoridade e sucesso:
- Palcos com luzes e fumaça;
- Microfone de orelha;
- Camisetas com frases motivacionais;
- Livros próprios empilhados no fundo;
- Vídeos com música épica;
- Discursos gritando palavras como “FOCO, FORÇA E FÉ”.
Essa teatralidade é planejada para criar impacto emocional e reduzir o senso crítico da audiência.
Os danos psicológicos causados pelo coaching picareta
A atuação irresponsável desses coaches produz múltiplos prejuízos:
1. Agravamento de quadros de ansiedade e depressão
Prometer mudanças rápidas e não entregar resultados gera frustração profunda.
2. Culpabilização extrema
Pessoas vulneráveis passam a acreditar que falharam porque “não têm mentalidade suficiente”.
3. Substituição do tratamento profissional
Muitos coaches orientam pessoas com depressão, bipolaridade ou traumas — o que é proibido e perigoso.
4. Exploração financeira
Cursos caríssimos, dívidas e sensação de abuso emocional são comuns.
Por que o Brasil se tornou um terreno fértil para coaches picaretas?
Esta é uma questão essencial. Alguns fatores sociológicos e geográficos explicam o fenômeno:
1. Desigualdade profunda
Em um país onde muitos buscam ascensão social rápida, promessas fáceis encontram terreno fértil.
2. Baixo acesso à saúde mental
No Brasil, conseguir atendimento psicológico gratuito é difícil. Coaches oferecem a “terapia que cabe no bolso”, mesmo sem preparo.
3. Influência das igrejas neopentecostais
A retórica do “você pode conquistar tudo” se aproxima dos discursos de muitas igrejas, criando identificação.
4. Cultura do espetáculo
O brasileiro é bombardeado por reality shows, lives e influencers. Coaches se encaixam bem nessa estética.
5. Crise prolongada
Desde 2014, o país vive crises econômicas sucessivas. A incerteza abre espaço para discursos salvacionistas.
Coaches x especialistas reais: onde está a diferença?
A crítica não é ao coaching legítimo, mas à sua deturpação.
A diferença entre um coach sério e um picareta é imensa:
| Coach sério | Coach picareta |
|---|---|
| Formação longa e certificada | Certificado comprado em 7 dias |
| Atua em áreas específicas | Atua em tudo |
| Não trata saúde mental | Promete curas emocionais |
| Fala com responsabilidade | Usa gritaria e frases prontas |
| Ética profissional | Exploração emocional e financeira |
A ciência contra a pseudociência
A psicologia, a sociologia e as neurociências têm denunciado:
- o uso indevido de termos como “mindset”, “neuroplasticidade” e “quântica”;
- o caráter pseudocientífico de técnicas apresentadas como milagrosas;
- a ausência de qualquer comprovação sobre métodos como “reprogramação mental” e “alta performance instantânea”.
O coaching picareta se sustenta em sensacionalismo, não em conhecimento.
Conclusão: o problema não são os coaches — é a indústria da ilusão
A picaretagem dos coaches é um sintoma de problemas muito maiores: desigualdade, crise emocional, precarização do trabalho e uma cultura obcecada por sucesso imediato.
O coach picareta promete atalhos onde não existem atalhos. Ele vende esperança pronta, motivação instantânea e transformação mágica. E, ao fazer isso, explora justamente quem mais precisa de acolhimento real, políticas públicas concretas e apoio profissional sério.
É preciso criar consciência crítica, regulamentar a prática e combater a indústria da ilusão que transforma vulnerabilidade em lucro.
A verdadeira mudança não vem de gritos, frases prontas ou livros de autoajuda — vem de políticas sociais, educação, saúde mental acessível e compreensão profunda das estruturas que moldam a vida no Brasil.