Introdução
O conceito de necropolítica, formulado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, tornou-se uma das principais chaves de interpretação para compreender como diferentes sociedades distribuem a vida e a morte. Em um mundo marcado por desigualdades estruturais, conflitos armados, abandono estatal e violência racial, a necropolítica ajuda a explicar por que certos grupos sociais são protegidos enquanto outros são sistematicamente expostos ao sofrimento, à violência ou mesmo à eliminação.
Mais do que uma reflexão, trata-se de um olhar profundo sobre mecanismos que se reproduzem diariamente: quem tem acesso pleno à saúde? Quem é alvo preferencial da violência policial? Quem fica à margem das políticas públicas? Quem ocupa os espaços de maior vulnerabilidade? Essas perguntas revelam que a gestão da vida não é neutra — ela é seletiva, hierárquica e, muitas vezes, mortal.
Este artigo busca explicar de forma ampla e acessível o que é necropolítica, suas origens teóricas, sua relação com o racismo e com o colonialismo, sua atuação nas sociedades atuais (inclusive no Brasil) e seus impactos sociais.
O que é necropolítica?
Em termos simples, necropolítica significa a política da morte — isto é, o uso do poder para decidir quem pode viver e quem deve morrer, e quais grupos sociais são expostos a condições que tornam suas vidas precárias ou inviáveis.
Mbembe parte da ideia de que o poder moderno não atua apenas para organizar a vida, mas também para produzir a morte. Determinados corpos são transformados em corpos “matáveis”: vidas consideradas sem valor, descartáveis, sacrificáveis.
Essas vidas podem ser eliminadas de forma direta, por meio de violência armada, ou indireta, por abandono, negligência, fome, racismo e precarização extrema. A necropolítica, portanto, é um conjunto de práticas que organizam a sociedade a partir da desigualdade entre vidas protegidas e vidas expostas à morte.
Relação com Foucault e a biopolítica
Antes de Mbembe, Michel Foucault já havia desenvolvido o conceito de biopolítica, que descreve o modo como os Estados modernos passaram a controlar e administrar a vida através de políticas públicas, normas sanitárias, estatísticas populacionais e tecnologias disciplinares. Se o soberano pré-moderno tinha o poder de “deixar viver e fazer morrer”, o Estado moderno passou a “fazer viver e deixar morrer”.
Mbembe argumenta que isso não basta para explicar os contextos de violência coloniais, raciais e contemporâneos. Para ele, existe um poder que não apenas deixa morrer, mas produz ativamente a morte como forma de governo. Por isso, a necropolítica é apresentada como uma expansão, ou mesmo uma crítica, ao modelo foucaultiano.
Enquanto a biopolítica se preocupa com a gestão e otimização da vida, a necropolítica evidencia os casos em que o poder atua principalmente pela destruição, opressão e eliminação.
Colonialismo e racismo: a base da necropolítica
Segundo Mbembe, não é possível compreender a necropolítica sem observar as experiências coloniais. O colonialismo europeu criou sistemas nos quais populações inteiras foram tratadas como menos humanas e, portanto, sujeitas à violência, escravidão, exploração e morte.
A escravidão, por exemplo, representou um regime necropolítico extremo: escravizados eram legalmente propriedade, privados de direitos e submetidos a violência constante. Suas vidas eram calculadas, compradas, vendidas e descartadas conforme a conveniência econômica.
O racismo moderno nasce dessa lógica. Ele determina que certas vidas valem menos ou quase nada. Essa hierarquização racial foi central nas sociedades coloniais e permanece até hoje nas democracias contemporâneas, influenciando:
- quem tem mais probabilidade de morrer pela polícia;
- quem é encarcerado em massa;
- quem vive em áreas com infraestrutura precária;
- quem é abandonado pelo sistema de saúde;
- quem enfrenta maior vulnerabilidade no mercado de trabalho.
Assim, o racismo funciona como engrenagem da necropolítica, pois é ele que define quem é visto como “perigo”, “alvo”, “descartável”.
Como a necropolítica opera na prática?
Para entender o funcionamento desse conceito, é necessário observar alguns mecanismos centrais.
Violência direta
Um Estado ou grupo de poder pode eliminar vidas diretamente por:
- assassinatos políticos;
- repressão militar;
- execuções extrajudiciais;
- massacres e genocídios;
- conflitos armados planejados.
Nesses casos, a morte é produzida como instrumento de governo, disciplina ou limpeza étnica.
Abandono e negligência
A necropolítica também se manifesta de forma mais silenciosa, quando o Estado decide não interferir ou desinvestir em políticas públicas essenciais. Assim, populações inteiras são expostas à morte por:
- fome;
- doenças evitáveis;
- falta de saneamento;
- falta de atendimento médico;
- ausência de proteção social;
- vulnerabilidade a desastres ambientais.
Aqui, não se mata diretamente, mas se permite que a morte aconteça como consequência do abandono.
Criminalização e desumanização
Outro mecanismo é transformar grupos sociais em “inimigos”, “criminosos” ou “sub-humanos”. Esse processo legitima políticas violentas e faz com que a sociedade aceite, ou até apoie, que esses grupos sejam maltratados ou mortos.
Exemplos incluem:
- migrantes tratados como ameaça;
- jovens negros retratados como perigosos;
- povos indígenas acusados de “atrapalhar o desenvolvimento”;
- pobres criminalizados por existir em espaços urbanos valorizados.
Territórios da morte
Mbembe descreve espaços onde a necropolítica se materializa com intensidade, como:
- campos de refugiados;
- fronteiras militarizadas;
- favelas e periferias segregadas;
- prisões superlotadas;
- regiões de conflito armado.
Nesses lugares, viver significa sobreviver em meio a riscos permanentes.
Exemplos históricos de necropolítica
Embora o conceito seja atual, ele ajuda a explicar eventos ao longo da história.
Colonialismo e escravidão
Como já mencionado, foram regimes baseados na violência total, na exploração extrema e na ideia de que certas vidas não possuíam valor.
Holocausto
O genocídio perpetrado pelo nazismo representa o auge da necropolítica organizada: uma estrutura burocrática e industrial dedicada à produção da morte em massa.
Apartheid na África do Sul
Durante décadas, a segregação racial estabeleceu condições de vida extremas para negros, restrições territoriais e repressão armada.
Ditaduras latino-americanas
No Chile, Argentina, Brasil e outros países, o Estado utilizou a morte — tortura, desaparecimentos, execuções — como método de controle político.
Necropolítica no mundo contemporâneo
Embora os grandes genocídios do século XX tenham terminado, a necropolítica continua operando de formas diferentes.
Crises migratórias
Milhares de pessoas morrem todos os anos ao atravessar fronteiras militarizadas. Barcos afundam no Mediterrâneo, refugiados são deixados em desertos africanos e imigrantes morrem na fronteira dos Estados Unidos. A morte se torna parte do sistema de controle migratório.
Guerras e ocupações
Conflitos no Oriente Médio, como na Palestina, Iêmen e Síria, expõem civis a bombardeios, fome, destruição de hospitais e bloqueios de ajuda humanitária — instrumentos necropolíticos de guerra.
Racismo estrutural
Em diversos países, especialmente nas Américas, pessoas negras estão mais sujeitas à violência policial, desemprego, doenças evitáveis e ausência de políticas públicas. A morte se distribui de forma desigual.
Sistema prisional
Prisões superlotadas, insalubres e violentas configuram espaços onde o Estado abdica do dever de preservar a vida. Epidemias, fome, agressões e mortes são sintomas de uma necropolítica institucionalizada.
Políticas ambientais e econômicas
Grandes projetos econômicos, como mineração ou agronegócio, frequentemente geram destruição de territórios indígenas, contaminação de rios e violência armada contra comunidades tradicionais. A lógica necropolítica opera ao considerar algumas vidas como obstáculos ao desenvolvimento.
A necropolítica no Brasil
O Brasil é um dos países onde o conceito de Mbembe mais se aplica, devido à combinação de desigualdades sociais profundas, racismo estrutural, violência policial e abandono estatal.
Letalidade policial
A polícia brasileira está entre as que mais matam no mundo, e seus alvos preferenciais são homens negros jovens de periferias. Essas mortes não são acidentais: elas resultam de uma política de segurança que normaliza a violência letal contra certos grupos.
Abandono das periferias
Faltam saneamento, escolas, hospitais e oportunidades. O Estado aparece nas periferias principalmente em forma de repressão, não de serviços públicos. Diariamente, milhares de pessoas vivem em espaços de risco, sem proteção institucional.
População em situação de rua
A negligência e o descaso transformam a vida nas ruas em um espaço de morte lenta, marcada por violência, fome, doenças e frio.
Povos indígenas
A invasão de territórios tradicionais, o desmonte de órgãos de proteção e o avanço do garimpo ilegal colocam diversas etnias sob ameaça constante.
Críticas ao conceito
Embora extremamente influente, a necropolítica recebe críticas:
- alguns autores afirmam que o conceito é amplo demais;
- outros dizem que ele corre o risco de banalizar a morte;
- há também quem argumente que ele não distingue suficientemente entre democracias e regimes totalitários.
Contudo, mesmo com críticas, a necropolítica permanece como uma das ferramentas teóricas mais úteis para entender as formas contemporâneas de violência.
Como resistir à necropolítica?
Mbembe defende que é preciso construir políticas da vida, que valorizem a dignidade humana acima da lógica da violência ou do lucro.
Isso inclui:
- combate ao racismo estrutural;
- investimento em educação, saúde, saneamento e políticas sociais;
- desmilitarização da segurança pública;
- fortalecimento dos direitos humanos;
- proteção de minorias étnicas, raciais e sociais;
- políticas ambientais responsáveis;
- redução das desigualdades econômicas.
Ao criar condições dignas para todos, a sociedade reduz o campo de ação da necropolítica.
Conclusão
A necropolítica revela a face mais brutal dos sistemas de poder contemporâneos: a capacidade de definir quais vidas são dignas e quais podem ser descartadas. Seja pela ação direta da violência, seja pelo abandono e pela negligência, milhões de pessoas em todo o mundo vivem em condições que ameaçam permanentemente sua existência.
Compreender esse conceito é essencial para denunciar desigualdades, analisar criticamente as estruturas de poder e buscar caminhos que coloquem a vida — e não a morte — no centro das decisões políticas. A necropolítica não é apenas um diagnóstico, mas um convite à construção de sociedades mais justas, solidárias e humanas.
RECOMENDAÇÃO DE LEITURA
Saiba mais sobre:
Biopolítica: conceito, origens, aplicações e impactos na sociedade contemporânea
[…] a biopolítica busca administrar a vida, a necropolítica opera pela produção da […]