Introdução

Entre os muitos nomes que marcaram o nascimento da filosofia, Tales de Mileto ocupa um lugar de destaque. Frequentemente lembrado como o primeiro filósofo ocidental, ele inaugurou uma nova forma de pensar: em vez de recorrer a narrativas míticas para explicar o mundo, buscou uma explicação racional e natural.

O ponto central de sua filosofia é a afirmação de que a água é o princípio de todas as coisas. Essa ideia, aparentemente simples, representa uma revolução intelectual. Em um tempo em que os fenômenos naturais eram atribuídos à vontade dos deuses, Tales ousou afirmar que havia um elemento básico, material e concreto, capaz de explicar a origem e a sustentação do cosmos.

Neste artigo, vamos explorar em profundidade o pensamento de Tales sobre a água: por que ele a escolheu como fundamento da realidade, quais observações o levaram a essa conclusão, como Aristóteles interpretou suas ideias e qual a importância desse pensamento para a história da filosofia.

O contexto do pensamento de Tales

Tales viveu em Mileto, uma cidade grega localizada na Ásia Menor (atual Turquia), por volta de 624 a.C. a 546 a.C. Mileto era um importante centro comercial, cultural e científico da época, em contato constante com egípcios e babilônios.

Esse ambiente favoreceu a circulação de ideias e o desenvolvimento de um espírito crítico. Tales teve contato com saberes matemáticos e astronômicos, mas sua originalidade esteve em aplicá-los a uma questão fundamental: de que é feito o mundo?

Essa pergunta, que pode parecer óbvia hoje, foi um divisor de águas na Antiguidade. Até então, os gregos explicavam a natureza a partir dos mitos: deuses eram responsáveis pela chuva, pelas tempestades ou pela fertilidade da terra. Tales, porém, propôs que havia uma substância única, a água, que estava na base de todos os fenômenos.

A água como princípio (arché)

O termo arché significa “princípio”, “origem” ou “fundamento”. Entre os filósofos pré-socráticos, essa foi a grande questão: qual é o elemento básico que constitui a realidade?

Para Tales, a resposta era clara: a água é a substância fundamental da qual tudo se origina e para a qual tudo retorna.

Essa escolha não foi aleatória. Tales observava o mundo e percebia o papel central da água:

  • Todos os seres vivos necessitam dela para existir;
  • Os alimentos e as plantas só crescem com a presença de água;
  • O próprio corpo humano é constituído em grande parte por líquidos;
  • Os rios, mares e chuvas sustentam a agricultura, base da sobrevivência.

Além disso, a água apresentava algo que fascinava: a capacidade de transformação. Ela podia ser sólida (gelo), líquida ou gasosa (vapor). Para Tales, essa maleabilidade fazia da água um candidato perfeito para ser o princípio universal.

A interpretação de Aristóteles

Muito do que sabemos sobre Tales vem de Aristóteles, que viveu séculos depois. Em sua obra Metafísica, Aristóteles comenta:

“Tales, o iniciador dessa espécie de filosofia, diz que o princípio é a água (por isso também afirmou que a terra repousa sobre a água).”

Segundo Aristóteles, Tales chegou a essa conclusão porque observava que a vida não existe sem umidade. Assim, a água seria o elemento primordial que sustenta a existência.

Essa interpretação reforça o caráter empírico do pensamento de Tales: ele não se apoiava em revelações divinas, mas em observações concretas do mundo ao seu redor.

A água como símbolo de vida e unidade

O pensamento de Tales pode ser lido de duas maneiras.

Por um lado, como uma hipótese cosmológica: a água seria a substância material de que tudo é feito. Nesse sentido, ele estaria dando o primeiro passo para a ciência natural.

Por outro lado, a água pode ser vista também como um símbolo de unidade. Em vez de imaginar múltiplos deuses ou forças diversas atuando no mundo, Tales concebeu um único princípio que dá coesão ao universo.

Essa busca pela unidade é fundamental na filosofia. O gesto de Tales não foi apenas dizer “tudo é água”, mas sim inaugurar uma forma de pensar que busca o comum no meio da diversidade.

Limitações do pensamento de Tales

É evidente que, do ponto de vista da ciência moderna, a tese de que tudo é feito de água é insustentável. Hoje sabemos que a matéria é composta por átomos, e que a diversidade da natureza não pode ser reduzida a um único elemento líquido.

No entanto, é injusto medir Tales apenas pelos padrões atuais. O verdadeiro valor de sua filosofia não está na resposta que deu, mas na pergunta que formulou.

Ao se perguntar sobre o princípio de todas as coisas e buscar uma explicação racional, Tales abriu caminho para toda a tradição filosófica e científica do Ocidente.

A diferença em relação ao mito

É importante destacar a ruptura que Tales representa.

Nos mitos gregos, a origem do mundo era explicada por genealogias divinas: Gaia, Urano, Cronos, Zeus e outros deuses se sucediam em uma narrativa que combinava natureza e divindade.

Tales rompe com essa lógica. Ele não nega os deuses, mas sua filosofia não precisa deles para explicar a realidade. Em vez de histórias míticas, oferece um princípio natural: a água.

Esse movimento é o início daquilo que chamamos de racionalidade filosófica.

A atualidade do pensamento de Tales

Mesmo que a tese de Tales não seja aceita como verdade científica, ela ainda pode inspirar reflexões.

Hoje, em um mundo marcado por crises ambientais e pela escassez de recursos hídricos, a afirmação de que “tudo é água” ganha novos sentidos. A dependência da humanidade em relação à água é inegável: sem ela, não há agricultura, não há indústria, não há vida.

Nesse sentido, Tales pode ser visto como um precursor de uma consciência ecológica: ainda que de maneira intuitiva, ele percebeu que a água é a base da existência.

Conclusão

A filosofia de Tales de Mileto, centrada na ideia da água como princípio de todas as coisas, representa o primeiro grande passo da razão ocidental.

Mais do que uma teoria sobre a composição do universo, sua proposta simboliza a passagem do mito à filosofia, da explicação sobrenatural à investigação racional.

Ao colocar a água no centro, Tales uniu observação empírica, reflexão filosófica e intuição poética. Sua ousadia não está apenas na resposta, mas sobretudo no gesto inaugural de perguntar de onde tudo vem e como podemos compreender o mundo sem recorrer apenas aos mitos.

Por isso, mesmo mais de dois milênios depois, o pensamento de Tales continua a nos inspirar. Ele nos lembra que a filosofia começa quando ousamos olhar para o mundo com curiosidade e perguntar: qual é o princípio de todas as coisas?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *