Introdução
A fome é uma das expressões mais cruéis da desigualdade social.
Ela não se limita à simples falta de alimentos — é um fenômeno complexo, estrutural e histórico, que reflete as contradições da sociedade moderna.

Um dos primeiros intelectuais a compreender e denunciar a fome de maneira científica foi Josué de Castro (1908–1973), médico, geógrafo, sociólogo e um dos pensadores brasileiros mais importantes do século XX.
Em obras como “Geografia da Fome” (1946) e “Geopolítica da Fome” (1951), ele revelou que o problema da fome não era natural, mas social — resultado direto da má distribuição de renda, da exploração econômica e das desigualdades entre as regiões do planeta.
Josué de Castro classificou a fome em dois tipos principais:
- Fome Quantitativa, relacionada à escassez de alimentos em quantidade;
- Fome Qualitativa, ligada à má qualidade nutricional da alimentação.
Neste artigo, vamos entender o pensamento de Josué de Castro, suas contribuições à Geografia e à Sociologia, e como suas ideias continuam atuais em um mundo que ainda convive com a fome em larga escala.
Quem foi Josué de Castro e sua contribuição para o estudo da fome
Josué de Castro nasceu no Recife, em 1908, e formou-se em Medicina. Desde cedo, percebeu que a fome não era apenas uma questão de saúde, mas um problema social e geográfico.
Ele observou como as condições econômicas, climáticas e políticas moldavam o acesso ao alimento e influenciavam a qualidade de vida das populações.
Em 1946, publicou “Geografia da Fome”, obra pioneira que mapeou a fome no Brasil e demonstrou que ela tinha causas estruturais, não sendo resultado de falta de produção, mas de má distribuição e desigualdade social.
Posteriormente, em “Geopolítica da Fome”, expandiu essa análise para o mundo, revelando que a fome também era uma ferramenta de dominação política e econômica entre nações.
Josué de Castro, portanto, foi um precursor da Geografia Humanista e da Geografia Crítica, antecipando debates que só seriam consolidados décadas depois.
Ele enxergava o espaço geográfico como resultado das relações entre sociedade e natureza — e, nesse contexto, a fome era um indicador das injustiças na organização do território.
A fome como fenômeno social e não natural
Antes de Josué de Castro, era comum associar a fome a fatores naturais, como secas, pragas ou limitações geográficas.
Ele rompeu com essa visão determinista, afirmando que a fome é produto da ação humana e das estruturas sociais de dominação.
Segundo o autor, o problema central não está na falta de alimentos no planeta, mas em quem tem acesso a eles.
A fome, portanto, é um fenômeno político e econômico, pois decorre da maneira como a sociedade organiza a produção e a distribuição de riquezas.
Essa perspectiva foi revolucionária, porque retirou a fome do campo da biologia e a inseriu no campo das ciências sociais.
Com isso, Josué de Castro passou a analisar o fenômeno sob duas dimensões principais: a quantitativa e a qualitativa.
Fome Quantitativa: a insuficiência de alimentos
A fome quantitativa é o tipo mais evidente e dramático.
Ela ocorre quando uma pessoa ou grupo não consome alimentos em quantidade suficiente para atender às suas necessidades calóricas diárias.

Características da Fome Quantitativa
- Ocorre quando a ingestão de alimentos é inferior ao necessário para manter as funções vitais;
- Provoca perda de peso, fraqueza, doenças e, em casos extremos, morte;
- É comum em contextos de pobreza extrema, guerras, secas prolongadas ou desastres naturais;
- Afeta principalmente populações rurais isoladas e periferias urbanas desassistidas.
Josué de Castro via esse tipo de fome como uma expressão direta da miséria econômica, na qual o indivíduo não tem renda para comprar comida ou não há alimentos disponíveis em seu entorno.
Ela está ligada à falta de acesso, não necessariamente à falta de produção.
Por exemplo, o Nordeste brasileiro — foco de muitos estudos de Josué de Castro — apresentava regiões com produção agrícola concentrada em monoculturas de exportação, o que deixava a população local sem alimentos básicos.
Assim, ele demonstrava que a fome quantitativa é consequência da estrutura fundiária e da desigualdade social.
Principais causas da Fome Quantitativa
- Desigualdade de renda e concentração de terras;
- Falta de políticas públicas de distribuição e assistência;
- Crises econômicas e desemprego;
- Guerras, bloqueios e deslocamentos populacionais;
- Dependência alimentar de importações.
Fome Qualitativa: a carência de nutrientes
A fome qualitativa é mais silenciosa, mas igualmente grave.
Ela ocorre quando o indivíduo consome alimentos em quantidade suficiente, porém sem qualidade nutricional — ou seja, faltam nutrientes essenciais como proteínas, vitaminas e minerais.
Josué de Castro chamou atenção para esse tipo de fome porque, muitas vezes, ela é invisível aos olhos da sociedade.
As pessoas comem todos os dias, mas de forma desequilibrada, com dietas baseadas em poucos alimentos e pobres em nutrientes.
Exemplo clássico:
O autor citava o caso das populações nordestinas que, apesar de se alimentarem com regularidade de farinha e rapadura, sofriam de anemia, raquitismo e desnutrição proteica, pois a dieta era carente de ferro e proteínas.
Características da Fome Qualitativa
- A alimentação é suficiente em quantidade, mas deficiente em qualidade;
- Provoca doenças silenciosas e degenerativas;
- Afeta especialmente crianças e gestantes;
- Pode ocorrer tanto em regiões pobres quanto em países ricos, devido à má alimentação.
Hoje, a fome qualitativa se manifesta de novas formas, como a “fome oculta”, termo usado por organismos internacionais para descrever populações que sofrem carências nutricionais apesar de não passarem fome física.
Isso está diretamente ligado ao consumo excessivo de alimentos ultraprocessados, comuns nas periferias urbanas.

Principais causas da Fome Qualitativa
- Dieta baseada em alimentos industrializados e pobres em nutrientes;
- Falta de acesso a alimentos frescos e saudáveis;
- Desinformação alimentar e publicidade agressiva;
- Políticas agrícolas voltadas para monoculturas e exportação;
- Urbanização acelerada e perda de hábitos alimentares tradicionais.
A geografia da fome e a desigualdade global
Josué de Castro foi pioneiro ao mapear a fome em diferentes regiões do Brasil e do mundo.
Ele demonstrou que a fome não se distribui de maneira aleatória, mas está associada a regiões com condições socioeconômicas precárias, muitas vezes exploradas por potências internacionais.
Em sua “Geopolítica da Fome”, o autor argumentava que a fome também é um instrumento de poder — usada historicamente por países desenvolvidos para submeter e explorar os países periféricos.
Segundo ele, a fome é “a arma mais poderosa do imperialismo”.
Esse pensamento aproximou sua obra da Geopolítica Crítica, pois tratava a fome como parte das relações internacionais de dominação econômica.
A lógica é simples: quem controla o alimento, controla a vida.
Josué de Castro via a fome como uma geografia moral do mundo, onde cada território expressa, em sua forma de produção e consumo, o grau de justiça social que o caracteriza.
A fome no Brasil e os desafios contemporâneos
Mesmo após décadas das obras de Josué de Castro, o Brasil ainda enfrenta o problema da fome.
De acordo com dados da FAO e da Rede PENSSAN, milhões de brasileiros vivem em insegurança alimentar, seja leve, moderada ou grave.
O retorno do país ao Mapa da Fome da ONU nos últimos anos mostra que as desigualdades estruturais apontadas por Josué continuam atuais.
Enquanto parte da população desperdiça toneladas de alimentos, outra parte luta para comer uma única refeição por dia.
A fome quantitativa e qualitativa ainda coexistem:
- A fome quantitativa atinge famílias que passam longos períodos sem comida;
- A fome qualitativa aparece em pessoas que comem, mas têm dietas baseadas em alimentos ultraprocessados, sem nutrientes essenciais.
Além disso, há novas dimensões do problema, como o impacto das mudanças climáticas na produção agrícola, o aumento do preço dos alimentos e a desigualdade no acesso a alimentos saudáveis nas cidades.
Lições e atualidade do pensamento de Josué de Castro
O legado de Josué de Castro vai além da denúncia da fome.
Ele nos ensinou que a fome é um fenômeno político, e que combatê-la exige transformações sociais profundas.
Seus estudos influenciaram políticas públicas, como os programas de merenda escolar, reforma agrária e segurança alimentar.
Sua visão interdisciplinar — unindo Geografia, Sociologia, Economia e Medicina — mostra que a fome deve ser enfrentada de forma integrada.
Mais de meio século depois, suas ideias seguem inspirando movimentos sociais e pesquisadores que lutam por um modelo de desenvolvimento mais justo e sustentável.
Em um mundo onde ainda se desperdiça comida suficiente para alimentar todos os famintos, suas palavras permanecem atuais e urgentes.
Conclusão
Josué de Castro foi um visionário que desafiou a lógica de seu tempo.
Ao classificar a fome em quantitativa e qualitativa, ele revelou que o problema alimentar é muito mais complexo do que parece — é reflexo da estrutura desigual da sociedade.
A fome não é fruto do acaso nem da natureza, mas da forma como o ser humano organiza o espaço e distribui suas riquezas.
Compreender isso é o primeiro passo para superá-la.
Mais do que estudar suas causas, é preciso agir: combater a fome é lutar por dignidade, justiça social e soberania alimentar.
E essa luta, como ensinou Josué de Castro, é de todos nós.