Introdução

Quando pensamos na trajetória da filosofia moderna, poucos pensadores foram tão radicais e influentes quanto David Hume. O filósofo escocês do século XVIII levou o empirismo — doutrina que afirma que todo o conhecimento vem da experiência — até suas últimas consequências, provocando um verdadeiro terremoto intelectual.

Para Hume, a razão humana é muito mais limitada do que imaginamos. Tudo o que sabemos, pensamos e acreditamos tem sua origem nas impressões sensoriais — aquilo que percebemos com os sentidos. A partir dessa base, ele desafiou algumas das crenças mais profundas da filosofia ocidental: a noção de causalidade, a ideia de um “eu” permanente e até mesmo a validade racional da crença em Deus.

Mas Hume não foi apenas um destruidor de certezas. Ele também foi um pensador que, ao reconhecer os limites da razão, nos ensinou a valorizar o papel da experiência, da observação e do hábito na construção do conhecimento humano.

Este artigo busca compreender o empirismo humeano em sua essência, analisando suas origens, seus princípios fundamentais, suas consequências filosóficas e seu impacto sobre a ciência, a religião e a própria ideia de racionalidade.

Contexto Histórico e Intelectual

Labirintos do Ser: David Hume - Do estudo da história (1741).
David Hume (1711 – 1776)

David Hume nasceu em 1711, em Edimburgo, durante um período de efervescência cultural conhecido como o Iluminismo Escocês. Essa época foi marcada por uma confiança crescente na razão e pela busca de explicações naturais para os fenômenos humanos e sociais.

Antes dele, o empirismo já havia sido inaugurado por Francis Bacon e desenvolvido por John Locke, que defendia que a mente humana é como uma tábula rasa — uma folha em branco que a experiência vai preenchendo aos poucos. Locke acreditava que todas as ideias vêm da experiência, mas mantinha certa confiança na capacidade da razão para organizar esse conhecimento.

Hume, porém, foi mais longe. Ele quis descobrir até onde o pensamento humano poderia ir se fosse sustentado apenas pela experiência sensível. Ao fazer isso, acabou revelando algo surpreendente: se a experiência é o único fundamento do conhecimento, então muitas das certezas que acreditamos ter — inclusive as da ciência e da metafísica — são apenas hábitos mentais, e não verdades absolutas.

A Mente Humana e as Impressões

Para compreender o empirismo de Hume, é preciso entender sua teoria da mente. Ele distingue dois tipos de percepções:

  • Impressões: são as percepções diretas, vívidas e imediatas — aquilo que sentimos, vemos, ouvimos ou experimentamos.
  • Ideias: são cópias enfraquecidas das impressões, ou seja, as lembranças, pensamentos e reflexões sobre o que já sentimos.

Por exemplo, quando vemos o fogo e sentimos seu calor, temos uma impressão. Quando mais tarde pensamos nesse fogo, formamos uma ideia — uma imagem mental derivada da experiência sensorial original.

Assim, toda ideia tem origem em uma impressão. Se não houver impressão, não há ideia. Essa simples afirmação destrói qualquer possibilidade de conhecimento que não derive da experiência sensível — o que coloca em xeque tanto as ideias inatas de Descartes quanto os sistemas metafísicos que pretendem conhecer o mundo apenas pela razão.

Hume resume essa posição com clareza:

“Todas as ideias são cópias de nossas impressões.”

Com isso, ele estabelece o ponto de partida de seu empirismo radical: nada pode ser pensado que não tenha sido antes sentido.

A Crítica à Causalidade

Um dos conceitos mais famosos e revolucionários do pensamento de Hume é sua crítica à noção de causa e efeito.

Tradicionalmente, acreditamos que os acontecimentos do mundo estão ligados por relações necessárias: o fogo causa o calor, o choque causa a dor, o empurrão causa o movimento. Para Hume, porém, isso é uma ilusão mental.

O que realmente percebemos na experiência não é uma conexão necessária entre os eventos, mas apenas a sucessão constante entre eles. Ou seja, nós vemos um evento A (como o fogo) seguido de um evento B (como o calor), e, após repetidas observações, passamos a acreditar que A causa B.

No entanto, essa crença não tem base racional — é apenas o hábito que nos faz esperar que o futuro repita o passado. Não há nada na experiência que garanta que o fogo deve gerar calor; apenas observamos que, até agora, isso sempre aconteceu.

Hume afirma:

“A causa não é algo que possamos perceber com os sentidos; é uma construção da mente, um costume de associar ideias.”

Essa crítica abala o próprio fundamento do conhecimento científico, que se baseia na ideia de causalidade. Para Hume, a ciência não é uma coleção de verdades absolutas, mas um conjunto de generalizações úteis, baseadas na experiência e no costume, mas nunca na certeza lógica.

O Problema da Indução

Ligado à crítica da causalidade está o problema da indução, outra das grandes contribuições de Hume à filosofia.

A indução é o raciocínio pelo qual inferimos leis gerais a partir de casos particulares. Por exemplo, se todos os cisnes que vimos até hoje são brancos, concluímos que “todos os cisnes são brancos”. Mas como podemos garantir que isso será sempre verdade?

Para Hume, não há justificativa racional para essa inferência. O fato de algo ter acontecido repetidas vezes não é garantia de que continuará acontecendo. A crença na regularidade da natureza — base da ciência — é apenas uma crença psicológica, não uma verdade racional.

Essa reflexão, aparentemente simples, teve um impacto enorme. Hume mostrou que a ciência está fundada na fé na experiência passada, e não numa lógica indestrutível. Ele não estava negando o valor da ciência, mas mostrando que suas bases são humanas, falíveis e empíricas.

O Eu Como Ilusão

Outra consequência radical do empirismo de Hume é sua negação da existência de um “eu” permanente.

Desde Descartes, o “eu” era considerado o ponto de partida da filosofia — o famoso “penso, logo existo”. Mas Hume discorda: quando observamos nossa própria mente, o que encontramos não é um “eu” fixo e imutável, mas uma sucessão de percepções — sensações, ideias, lembranças e emoções que mudam constantemente.

Ele afirma:

“Quando penetro mais intimamente no que chamo de mim mesmo, sempre tropeço em uma percepção particular, nunca no ‘eu’.”

Assim, o “eu” é apenas uma ficção útil, uma forma de unificar o fluxo de experiências em algo coerente. Em termos modernos, poderíamos dizer que a identidade é uma narrativa que construímos, e não uma essência que possuímos.

Essa visão influenciou profundamente a psicologia, a fenomenologia e até a filosofia contemporânea, abrindo caminho para a ideia de que o sujeito é uma construção social e psicológica, e não uma substância metafísica.

Hume e a Religião

O empirismo de Hume também teve implicações profundas para a religião. Como ele acreditava que todo conhecimento vem da experiência, não havia espaço para provar racionalmente a existência de Deus — uma ideia que não pode ser verificada pelos sentidos.

Em sua obra Diálogos sobre a Religião Natural, Hume argumenta que as tentativas de demonstrar a existência divina por meio da razão — como o argumento do desígnio, que vê propósito e ordem no universo — não têm validade empírica. O mundo pode parecer ordenado, mas isso não prova que foi criado por um ser inteligente.

Para ele, a crença religiosa é uma manifestação natural da mente humana, movida pela imaginação e pelo medo, mas não pela razão. Essa posição fez de Hume uma figura polêmica, muitas vezes acusada de ateísmo — embora ele próprio preferisse se declarar apenas um cético.

O Empirismo Moral

Apesar de seu ceticismo, Hume não era um niilista. Ele acreditava que o ser humano possui uma natureza moral, mas que a moralidade não se baseia na razão — e sim nos sentimentos.

Segundo ele, as distinções entre o bem e o mal não são descobertas pela lógica, mas sentidas pela empatia, compaixão e simpatia que temos pelos outros. A moral é, portanto, um produto da natureza humana, e não uma revelação divina ou um sistema racional abstrato.

Essa visão humanista e empírica da ética antecipou ideias que seriam retomadas por filósofos modernos como Nietzsche, Kant e até Darwin, ao sugerir que os valores humanos têm origem em nossa biologia e sociabilidade.

O Ceticismo Moderado de Hume

Diante de tantas críticas às certezas da razão, Hume poderia parecer um niilista total — mas não é o caso. Ele propõe um ceticismo moderado: reconhece os limites do conhecimento, mas aceita que precisamos acreditar em certas coisas para viver.

O hábito, o costume e a experiência são suficientes para orientar nossa vida prática, mesmo que não possamos provar racionalmente suas verdades.
Assim, ele não destrói a razão — apenas a coloca em seu devido lugar: como uma ferramenta útil, mas subordinada à experiência e à natureza humana.

A Influência de Hume

O impacto de Hume na filosofia moderna é incalculável. Sua crítica ao racionalismo inspirou Immanuel Kant, que afirmou que Hume o “acordou de seu sono dogmático”. Kant procurou responder ao desafio humeano mostrando que o conhecimento depende tanto da experiência quanto de estruturas a priori da mente.

Além disso, Hume influenciou o positivismo, o empirismo lógico do século XX e a filosofia da ciência contemporânea, especialmente nas discussões sobre o método científico, a indução e o papel das crenças na formação do conhecimento.

Mesmo na psicologia e nas ciências sociais, sua visão de que o eu e a moral são produtos da experiência e das emoções continua profundamente atual.

Conclusão

O empirismo de David Hume é uma das expressões mais radicais e fascinantes do pensamento moderno. Ao afirmar que todo conhecimento vem da experiência, Hume desmontou as pretensões da razão absoluta e revelou o caráter humano, sensível e limitado de todo saber.

Sua filosofia nos convida à humildade intelectual: somos criaturas que aprendem observando, sentindo e repetindo. A razão é uma luz útil, mas frágil, que depende da experiência para se manter acesa.

Mais do que um destruidor de certezas, Hume foi um filósofo da lucidez — alguém que entendeu que a busca pela verdade não é um caminho de dogmas, mas de observação, dúvida e reflexão.

Em tempos de excesso de confiança em teorias e crenças inflexíveis, suas palavras continuam ecoando:

“A razão é, e deve ser, escrava das paixões.”

E talvez, no fundo, o que Hume quis nos ensinar é que compreender o mundo exige mais do que pensar — exige sentir, observar e aceitar a incerteza como parte essencial da condição humana.

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